Ainda que a ministra do Planejamento, Simone Tebet, tenha adiado sua viagem ao Acre para debater uma das possíveis rotas de ligação dos oceanos Atlântico e Pacífico, passando pela região do Juruá para alcançar o Porto de Chancay, na cidade de mesmo nome e localizada a 80 quilômetros de Lima, no Peru, as negociações entre os governos do Brasil e da China vão avançar ainda mais nos próximos meses graças à visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país asiático durante este início de semana.
Lula se encontrou novamente com o presidente chinês Xi Jinping e, de acordo com autoridades da diplomacia brasileira, a China se mostrou um país cada vez mais disposto a ajudar o Brasil com a construção de uma Ferrovia Bioceânica, a fim de diminuir o tempo de navegação dos portos brasileiros, no Atlântico, até o mercado asiático, pelo Pacífico. Uma dessas alternativas de ferrovia passa pelo Acre, conforme o mapa divulgado pelo governo brasileiro.
A busca pela interligação oceânica é antiga e não só de interesse dos chineses. Há décadas, o Brasil é amplamente dependente do transporte rodoviário para a circulação de mercadorias e, por isso, o ministério sob Simone Tebet criou o Plano Nacional de Logística 2025, cujo último relatório aponta que nada menos de 65% do transporte de cargas é feito em estradas, principalmente por caminhões, e que isso deve mudar com a China e o Brasil acelerando a construção de ferrovias estratégicas para a economia dos dois países. Uma das alternativas, a Ferrovia Bioceânica Brasil-Peru, já tem 30% de seu percurso de 4.400 km construído e a ideia é que ela fique pronta em 2028.
O trajeto começa em Ilhéus, na Bahia, passa por Caetité (BA) e corta os estados de Goiás (ou Tocantins), Mato Grosso, Rondônia e Acre, para terminar em Chancay, no Peru, a 80 km de Lima, onde a China construiu um megaporto.
Traçado alternativo da Ferrovia Bioceânica desvia do Acre e reforça debate sobre impactos ambientais e interesses logísticos/Foto: Reprodução
Serra do Divisor, no Acre, pode ser entrave para a interligação
Há, no entanto, outras alternativas de trajetos, com pelo menos projetos com três ligações com a Ferrovia Norte-Sul e também utilizando a Ferrovia de Integração Oeste-Leste. Isso vai reduzir em 10 dias o transporte de mercadorias entre o Brasil e a China, que atualmente é feito via Oceano Atlântico.
Mas este não deve ser o único projeto de ferrovia chinesa no Brasil, o que causará um impacto importante no transporte de caminhões e vai mexer nos interesses da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), entre outros.
Duas empresas chinesas do setor ferroviário, China Railway Construction Corporation (CRCC) e China Railway Engineering Corporation (CREC), trabalham em outras rotas, como uma que parte do Porto do Açu (RJ), passa por Corinto (MG), Uruaçu (GO) e Lucas do Rio Verde (MT) até chegar a Porto Velho (RO), e outra de 2.396 km ligando o Porto de Santos (SP) a Antofagasta (Chile), passando por Paraguai e Argentina.
Uma das causas das rotas alternativas deixarem o Acre de fora da interligação bioceânica seria a intransigência de grupos de ambientalistas e indígenas dispostos a impedir qualquer tentativa de construção passando por dentro do chamado Parque Nacional da Serra do Divisor, no Alto Juruá, a partir de Mâncio Lima, na fronteira do território brasileiro com o Peru.
Trem de carga moderno em operação: China quer investir em ferrovias no Brasil para agilizar escoamento de produção até o mercado asiático/Foto: Reprodução
No Senado brasileiro, o senador Márcio Bittar (UB-AC), autor da proposta de criação de uma estrada ligando o Acre, através de Mâncio Lima, no Juruá, à cidade de Pucallpa, no Peru, no Estado de Ucayali, praticamente já jogou a toalha em relação à estrada. Segundo o senador, enquanto for ministra do Meio Ambiente a acreana Marina Silva, atualmente deputada federal por São Paulo, a estrada não sai por ali.
Para Márcio Bittar, a estrada ligando Mâncio Lima a Pucallpa, atravessando a floresta e a Serra do Divisor, teria um custo menor do que por outras regiões. “Ali a Serra é a região mais baixa e os estudos mostram que seria o melhor local para a estrada, ainda que uma ferrovia”, disse o senador ao Contilnet.
Mas isso não significa que o governo brasileiro tenha desistido por completo do projeto. Se não for pelo Juruá, a ligação sairá por outras regiões. “Já estamos tratando disso com a China desde o primeiro mês do governo Lula”, disse na semana passada a ministra Simone Tebet, do Planejamento e Orçamento.
“Na primeira reunião com o presidente Xi Jinping, percebi que eles estão muito interessados na questão das ferrovias. Eles querem rasgar o Brasil com ferrovias. Não existe dinheiro público suficiente para fazer isso, é muito caro”, acrescentou a ministra.
Ligação ferroviária aponta para uso de trem-bala
Com muitas ferrovias, o Brasil vai se livrar de uma dependência histórica dos caminhões, que ocupam espaço exagerado nas estradas, tornam as viagens mais perigosas para automóveis e ônibus, mantêm os custos de transporte muito elevados (inclusive para a Anfavea, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) e ainda dão aos motoristas o poder de praticamente paralisar o país, no caso de uma greve geral. No entanto, as linhas férreas estariam longe de prejudicar os fabricantes.
De acordo com a Anfavea, o Brasil produziu em 2024 um total de 149.146 caminhões, dos quais 7.894 foram em sistema CKD (apenas montagem).
O recorde de produção de caminhões é de 2011, com 229.083 unidades, sendo 5.481 em CKD. Seis empresas produzem caminhões no país: Agrale (Brasil), DAF (Holanda), Iveco (Itália), Mercedes-Benz (Alemanha), Scania (Suécia), Volkswagen (Alemanha) e Volvo (Suécia).
Com exceção da DAF, todas produzem também ônibus. Em 2024, o Brasil exportou 25.827 caminhões e o recorde é de 2007, com 41.384 caminhões exportados.
As novas ferrovias no Brasil terão trilhos para trens com bitola larga, medindo 1.600 mm entre as rodas direitas e as rodas esquerdas. Esta semana, por ocasião do encontro entre os presidentes Xi e Lula em Pequim, mais detalhes devem surgir sobre essa e outras parcerias.
É possível que haja investimento também em linhas de trens de passageiros, inclusive o famoso trem-bala, de alta velocidade, o que também causará impacto na indústria de ônibus e nas viagens de carros.
Se os automóveis forem utilizados mais nas cidades do que nas estradas, haverá um crescimento considerável de veículos elétricos e híbridos plug-in. Tudo isso interessa à China e assusta as montadoras associadas à Anfavea.
Não é por acaso que a Ferrovia Bioceânica Brasil-Peru começa na Bahia e passa por Minas Gerais. É na Bahia que a BYD promete fabricar carros elétricos no Brasil, e é em Minas que fica um grande polo de mineração de lítio, material fundamental para as baterias de EVs.
Como se vê, uma revolução nos transportes brasileiros está prestes a começar. Isso certamente vai beneficiar muita gente e muitos setores, mas também vai mexer nos interesses de outros tantos. Talvez por isso o projeto das ferrovias chinesas ficou 10 anos engavetado (desde 2014), enquanto a China modificou totalmente o transporte de alguns países da África – mas isso já é outra história.
Fonte: Contilnet